domingo, 21 de abril de 2013

Lambanças da Língua


Deus deu livre arbítrio ao ser humano e aos cartórios de registro de nascimentos.  Pelo menos no Brasil.

Todo mundo quer viver num mundo “melhor”.  Se juntarmos isto à criatividade de nosso povo, descobriremos de onde surgem nomes como “Maycon”, “Christtyellen”, “Kelly”, “Weverllyn”, “Wesley” e tantos outros de pessoas atormentadas por essa herança maldita.  Estes seres passam a vida tentando corrigir seus nomes escritos com letras trocadas em listas de chamada, prontuários e documentos. 

Para ficar bonito, o nome precisa ter muitos Y, W, TT, NN, TH, PH e tudo o que faça ficar parecido com um nome de “gente de bem”.  Cheguei a conhecer um “Pheliphe”, cujo pai certamente não sabia onde enfiar o PH e achou bacana usar no começo e no fim; pena que a gente acaba lendo “Felife”.

Só quem tem um Y no nome sabe que tortura é essa. Eu tenho. Herdei do nome do meu tio gaúcho, que se chamava Luy.  Frequentemente sou “Robson Luiz”, “Robson Levy” e até “Robson Love”. Ouço e fico quieto, como todo condenado. Meu amigo Nelson Freitas (que não tem Y nem W), ao produzir o show de “Sá e Guarabyra”, me pediu máxima atenção, na hora de diagramar o jornal: — Olha o Y do Guarabyra, olha o Y do Guarabyra! Está no contrato! 

No caso do nome “Maycon”, este não existia antes da década de 1980.  Foi nessa época que, aqui no Brasil, resolveram juntar, numa sonoridade só, o nome “Máicol” com “Jéquissom”.  Daí saiu o nosso “Maycon” (ou “Maicon”), com N no final.  Mas se Michael é Miguel em português e os dois teminam em L, o resultado deveria ser “Maicol”.  O fato é que sempre chamaram este artista americano, que devia ter uma vida bem “melhor” do que a nossa, de “Maicom Jéquissom”, porque, assim, dá rima e a rima faz o nome ficar bonito.

“Valdisnêi” estava faltando muitas aulas no colégio e foram procurar ele em casa.  O endereço era de difícil identificação.  Foi um tal de perguntar por “Valdisnêi” aqui, “Valdisnêi” ali, até que a mãe, da porta de casa, se manifestou: — Olha só, eu tenho um filho que estuda nessa escola, mas o nome dele é “Walt Disney”! (que ela registrou Valdisnei).

Isso me lembra também de uma vizinha que berrava o nome do filho o dia inteiro. Era algo como “Ânul”, “Ându”, “Endu”. Aquilo não parecia nome de gente, mas certo dia, uma visita que foi à casa dela matou minha curiosidade.  Sem querer, acabei ouvindo a pergunta: — E aí, Fulana, como vai o Andrews? 

Ó xente, my God, se ela não conseguia nem falar aquele nome, por que o escolheu?  Poderíamos perdoá-la, dizendo que um “Andrews” pode, além de já ter sido nome de sal de fruta, ser meio caminho andado para o menino tornar-se dono de uma grande empresa, por exemplo. 

E por falar em grande empresa, diversos nomes estampados em embalagens são muito apreciados pelo nosso povo. É assim: o cara acorda de manhã, senta pra tomar café, acaba dando uma olhada naquela tampa da margarina pra ver do que é feito aquele troço.  Eis que lá aparece, numa surpresa do destino, o nome de seu próximo filho: Anderson Clayton. Este é um clássico; já dei aula para vários.

Em Portugal a lei proíbe tanta criatividade. Se é bom ou ruim, não sei.  Lá, só se permite registrar nomes conhecidos.  Até os termos em inglês, ligados à tecnologia, são barrados.  “Mouse”, em Portugal, é rato mesmo.

Falando mais tecnicamente, a etimologia das palavras segue uma lógica que preserva a transmissão do nome, ou seja, cada letra que forma as sílabas de cada palavra tem seu cunho histórico, seu significado.  Se a gente brinca de fazer sopa de letrinhas, isto se perde, e junto, a conexão com nossa origem cultural.  Mesmo aqueles que, por uma razão ou outra, usam um nome ou sobrenome emprestado, utilizam um símbolo autêntico que pertence à identidade humana. Palavra escrita é coisa de valor.  Um nome inventado vira uma alegoria.  No carnaval, se usam muito as alegorias.  Elas são vistosas, cheias de penduricalhos, lembram alguma coisa que existe de verdade, mas, na verdade, não o são.